Homeschooling e regressão social
José Álvaro de Lima Cardoso
Tramita no Senado um projeto que autoriza a educação domiciliar no Brasil, conhecida como homeschooling, que já foi aprovado na Câmara Federal em maio deste ano. Segundo a Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned), o ensino domiciliar é reconhecido e/ou regulamentado em mais de 60 países. Além disso, a prática é adotada em nações de variadas sistemas políticos e culturas diferentes. Talvez fosse mais importante ver o peso que essa modalidade de educação tem em cada uma dessas sociedades. Segundo a referida associação estima-se que hoje 7.000 famílias adotem a educação escolar em casa, totalizando cerca de 15.000 estudantes. Este número é praticamente nada, se pensarmos que o Brasil tem 46,7 milhões de estudantes na Educação Básica (dados do Censo Escolar de 2021). Esse número revela não só que o país é um gigante em vários sentidos, como mostra que a prática do homeschooling é residual. No Brasil, como no mundo, a educação domiciliar é adotada por famílias com situação econômica superior à média. O que é natural, porque o ensino domiciliar exige uma infraestrutura e uma organização que a maioria das famílias não dispõe. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua- IBGE) em 2021 a renda média mensal domiciliar per capita foi de R$ 1.353. É o menor valor real em dez anos, considerando a série histórica da pesquisa iniciada em 2012, o que revela a tragédia que foi o golpe de 2016. Segundo o DIEESE uma cesta básica em Florianópolis para um adulto custou R$ 760,41 em junho. Equivale a 56% da renda média mensal per capita do Brasil, segundo a PNAD-IBGE, como vimos. Conforme informações da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar) 40% dos domicílios brasileiros convivem com algum tipo de insegurança alimentar, equivalente a cerca de 125,2 milhões de pessoas, mais da metade da população do país. Cerca de 15% da população, equivalente a 33 milhões de pessoas, (73% da população da Argentina) estão passando fome, das quais 14 milhões ingressaram nessa condição no último ano.
É difícil esperar que a educação domiciliar irá fermentar num ambiente desses. Não tem clima, aliás, para crescer em muitas partes do mundo, porque a crise é mundial. Claro, poderia acontecer o crescimento dessa modalidade de educação através da tragédia, ou seja, por uma terceira guerra mundial e a decorrente destruição de estruturas estatais. Ou uma pandemia, coisas desse tipo. Não seria preciso lembrar que a disseminação do homeschooling mataria o movimento sindical dos trabalhadores da educação, tal como a gente o conhece hoje. Exceto se tivesse financiamento público. Mas não será o governo atual que iria ajudar a financiar o movimento sindical, pelo contrário, a tentativa é de liquidação da organização dos trabalhadores. O fato é que, se regredíssemos para o ensino domiciliar, como foi na etapa de sociedade rural em alguns países, a destruição do movimento sindical seria um problema menor. Não estamos numa era de evolução, mas em um período de regressão social, como revela o aumento da fome no mundo. Se o homeschooling crescesse agora, seria um movimento regressivo e não um salto para o futuro. Estou me referindo, claro, às relações sociais. Já a tecnologia vai continuar avançando de forma geométrica, porque assim caminha a humanidade. Desde a década de 1930, regra geral, o Brasil tem procurado ampliar a escolarização da população. Até a revolução liderada por Getúlio Vargas, o Brasil era uma grande “fazenda”, dominada pela oligarquia rural, e sem indústria. A Aliança Liberal, encabeçada por Vargas reivindicava voto secreto, legislação trabalhista e o desenvolvimento da indústria nacional. O Brasil era muito atrasado, não existia direitos sociais e o povo era muito pobre. Em 1920, ano que precedia um período de grandes turbulências políticas no país, que culminariam com o movimento de 1930, mais de 70% da população brasileira era analfabeta. Até meados do século XX não existia debate sobre eficácia ou não do ensino domiciliar. As sociedades eram predominantes rurais, as pessoas não dispunham de alternativa, tinham que ensinar os filhos em casa, mesmo. Nos EUA está cheio de cientistas famosos que foram educados em casa (como
Thomas Edson, inventor da lâmpada elétrica, autor de mais de mil invenções, que estudou com sua mãe). O homeschooling moderno é algo recente, um debate que surge mais ou menos nos anos de 1970, quando reformadores e educadores começaram a questionar tanto as técnicas utilizadas como o produto final da escola formal (que certamente tinha muitas limitações e problemas). O potencial de crescimento dessa modalidade de ensino pode ser aferido pelo que acontece nos países mais “velhos”, imperialistas, que dominam a economia e a política mundiais. Os EUA são um dos países que tem a maior tradição nesse tipo de ensino, até onde conheço. Se estima que no país tenham 1,5 milhão de estudantes em educação escolar em casa num total de quase 80 milhões de estudantes, ou seja, menos de 2%. Na Alemanha a educação domiciliar é proibida, exceto em circunstâncias muito raras – como doença grave ou quando os pais são diplomatas, e residem em outros países. A proibição, ao que se sabe, vem desde 1938, com Adolf Hitler. O fato de que este era contra a educação domiciliar é um argumento, inclusive, dos defensores da dessa modalidade de educação, como um fator de democracia e liberdade de escolhas.
Um percentual inferior a 2%, como nos EUA, não afeta a escola pública, e parece até interessante. Desde que tenha a fiscalização pública dos resultados. Até porque, quem pratica esse tipo de experiência, em princípio, são as famílias com maior poder aquisitivo e mais bem estruturadas. Um governo sério regulamentaria o homeschooling e investiria pesado no ensino público. Claro, também procuraria inibir ao máximo a entrada de grupos estrangeiros no setor de ensino, que vêm para o Brasil arrancar dinheiro da população, sem a menor preocupação com o nível da educação e com qualquer projeto de desenvolvimento nacional.
No Brasil o governo não só não investe mais em educação, como elegeu os setores prioritários como principais vítimas dos cortes orçamentários. Segundo o Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) entre 2019 e 2021, a execução orçamentária da educação diminuiu R$ 8 bilhões em termos reais. Para 2022 o valor autorizado para educação (R$ 123,7 bilhões) é R$ 6,2 bilhões menor que o recurso de 2021 (R$ 129,8 bilhões). O governo anuncia cortes o tempo todo,
sempre em prejuízo de Saúde e Educação. No último dia 25, por exemplo, o Ministério da Economia anunciou que o bloqueio adicional de R$ 6,73 bilhões deve ser feito nos Ministérios da Saúde e da Educação. Isso ao mesmo tempo em que mantém o chamado orçamento secreto, que é uma verdadeira aberração.
A defesa do governo no ensino domiciliar está relacionada também à ideia de implantar o Estado mínimo. Enquanto o orçamento federal previsto para a educação neste ano é de R$ 123,7 bilhões, as despesas totais do governo este ano com o pagamento de juros vão ficar na casa de R$ 700 bilhões, alta de 56% sobre os R$ 448,2 bilhões gastos em 2021. Ou seja, meia dúzia de banqueiros e outros especuladores vão receber em seus cofres neste ano, o equivalente a mais de 5 vezes o orçamento para a educação. Mas eles acham pouco, querem diminuir o gasto do Estado com educação e mandar mais dinheiro para os banqueiros nacionais e internacionais. Juntamente com o desmonte do Estado, há um processo de desnacionalização da educação no Brasil, que é gravíssimo. São grandes grupos multinacionais que estão tomando conta da educação brasileira, o que representa um grande risco para o próprio futuro do país. A defesa da educação escolar domiciliar parte do pressuposto de que a educação formal se limita ao ensino do que está no currículo, com avaliação periódica em determinados momentos da trajetória curricular. Mas a Educação Escolar vai muito além disso, possibilitando: socialização do educando com outras crianças e jovens, exposição ao contraditório etc. A Educação não significa apenas acumulação de informações, chamada pelo educador Paulo Freire de “educação bancária”, mas algo sistêmico, que inclui além de obtenção de conhecimento, compreensão da estrutura social e formação para a cidadania. Na educação escolar em casa dificilmente haverá pluralismo e diversidade de ideias. Ademais, segundo os estudiosos, não existem evidências na literatura internacional de que crianças e jovens em ensino em casa tenham desempenho escolar melhor em relação a um estudante em educação tradicional. Ou seja, não há evidências que uma criança aprenderia mais na educação domiciliar do que na escola formal.